sábado, 27 de fevereiro de 2010

Escola da Ilha de Bere

Muitos corações devem ter suspirado ao ver a recente foto no Tablet, do cardeal paramentado com sua capa magna, posando perante uma celebração do rito Tridentino, a longa faixa de seda escarlate, tal qual uma bela serpente demoníaca extraída de uma das novelas de Philip Pullman, mantida à correta distância por um devotado coroinha. Encontramos aparências semelhantes, de gelada solenidade, em fotos do passado de tons sépia, sagrada tradição exercendo pressão sobre prelados de peso, lembrança majestosa santificada em rituais e vestimentas suntuosas. Parecem recordações de uma época real ou imaginada, em que as pessoas sabiam onde Deus as queria em Sua hierarquia.
É bom saber que antigos cânticos e fragrâncias devocionais podem ser novamente utilizados. A foto, no entanto, também poderia receber a leitura de uma moderna afirmação, acerca da tradição da modernidade. Isso está marcado por um pluralismo de estilos (incluindo saudosismo e restauração). A igreja moderna aprendeu a permitir a coexistência simultânea e não-competitiva de ritos complementares, Gregoriano aqui, missa popular ali, tal como diferentes janelas que podemos abrir na tela do computador. A tradição possui uma curiosa maneira de se atualizar a si mesma.
Recentemente, fui atingido por uma experiência de tradição, mais simples e mais humilde. Foi na escola de uma pequena ilha irlandesa, da qual a Sra. Toomey estava se aposentando, após trinta e seis anos de serviços. O número de estudantes da escola primária, em uma população total local de cerca de duzentas pessoas, flutua ao redor de vinte e cinco. Ao chegarem aos doze anos eles são promovidos a uma balsa diária que os leva à escola secundária do continente. A Sra. Toomey mora na cidade do continente, por isso, se utilizou dessa viagem duas vezes por dia ao longo de toda sua carreira.
Ela se lembrou de sua primeira nomeação como professora assistente. Ela havia recebido seu diploma de educadora, mas, estava incerta quanto ao que iria fazer e, trabalhava no posto de gasolina de seu pai, na cidade. Um dia, enquanto abastecia um carro, o pároco se aproximou dela, perguntando-lhe acerca de seus planos. Ela explicou que não havia nada definido em sua mente e, ele disse: 'muito bem, então você ensinará na ilha'. Ela estava empregada. Os processos burocráticos e de seleção evoluíram muito de lá para cá, conforme ela comentou em seu discurso de despedida. Apesar de seu medo da água, ela disse que aceitaria a nomeação, por um ano. Há cerca de dez anos, a balsa quase afundou ao se aproximar da doca e, ela foi jogada à água, tendo que nadar até o pier. Desde então, ela e seus alunos, passaram a sempre utilizar coletes salva-vidas.
Pais, ex-alunos devotados e amigos estavam reunidos na sala de aula para celebrá-la. Seus alunos, que hoje estão espalhados pelo globo, cresceram na ilha com uma identidade local que nem o tempo, nem a distância podem apagar. Em tempos difíceis, muitos dos ilhéus foram forçados a emigrar, para as Américas, Inglaterra ou Austrália. Hoje, eles normalmente preferem ficar; ou, sentem a atração para voltar a viver a melhor qualidade de vida, criar seus filhos em um ambiente mais saudável e alegre, fazendo parte de uma comunidade, ao invés de uma multidão urbana. É uma vida simples. É como se, toda noite, após a última balsa, a ponte levadiça tivesse sido erguida. Porém, não é mais primitiva e, como em toda comunidade real, há muito o que fazer e muitas histórias para contar.
A Sra. Toomey falou com grande serenidade e, com toda a confiança de uma professora em sua sala de aula. Então, ao se dar conta que um capítulo de sua vida se encerrava com suas palavras, começou a chorar, para o deleite de sua audiência e, sentou-se para assistir à sessão de slides. Parecia uma infindável série de fotos de aulas, sem grande mérito fotográfico e, para mim, elas logo se tornaram embaçadas. À minha volta, porém, cada slide provocava gritos de reconhecimento, nomes lembrados, risos com imagens mais jovens de si, perguntas e, atualização de histórias de vida. A liturgia doméstica terminou com um brinde.
Um velho ilhéu, uma vez me contou como eles se entretinham antes da televisão. As pessoas saíam à noite, qualquer que fosse a condição do tempo, caminhando até a casa de um vizinho, onde se sentavam, em uma cerimônia do chá, recontando as histórias que renovavam a comunidade. Histórias de família eram novamente recontadas, com uma atualização final, uma criança nascida em Boston, uma morte em Sidney.
A Tradição (literalmente uma 'transmissão') vive de juros compostos, não escondendo o talento enterrado, arriscando a mudança, não fazendo voltar os ponteiros do relógio. As pessoas que confiam em sua comunidade, são realistas quanto à mudança. Um visitante norte-americano, de passagem pela ilha, reclamou quanto a uma árvore que estava sendo derrubada para dar lugar a uma nova rua. 'Meu pai costumava subir nessa árvore', disse ele. 'Ah, mas ela não estava ali, muito antes do tempo de seu pai', observou um ancião, tornando tudo claro para aqueles que têm ouvidos para ouvir.
Com Muito Amor,


Laurence Freeman

Nenhum comentário:

Postar um comentário